quinta-feira, 30 de março de 2017

Contracultura, contracultura

Pára um Fiat Palio Sedan ao lado de José.

José: - Bom dia, Flávio?
Flávio: - Bom dia, José.
José: - Hemorio, por favor.
Flávio: - Claro, posso seguir o Waze?
José: - Pode sim, obrigado.
Flávio: - Aceita uma água?
José: - Ah, seria agradável. Obrigado mesmo, Flávio.
Flávio: - Por nada, sinta-se à vontade.
3 minutos depois...
José: - Olha, Flávio, que carrão! Essa é a nova CRV, não é?
Flávio: - É sim, José. Mas, sabe, eu prefiro sedans.
José: - É mesmo?
Flávio: - Sim, sim, gosto mesmo é de uma BMW....deve custar uns R$ 300.000,00 a que eu queria.
José: - Tre-zen-tos mil reais? Em um carro?
Flávio: - Sim, claro! Mas é uma BMW!
José: - Mas, por que você gastaria tanto em um carro?
Flávio: - Ah, é porque gosto de velocidade.
José: - Ah, então você gosta de velocidade. Então eu aposto que você adora Fórmula 1, não adora?
Flávio: - Mais ou menos. As vezes assisto, mas não muito.
José: - Hm...
José: - Então se grana não fosse o problema você compraria uma BMW de 300 paus?
Flávio: - Mas é claro?
José: - Mas, diga-me, Flávio, para quê?
Flávio: - Para correr, já disse que gosto de velocidade, ora!
José: - Sim, mas não dá para correr nas nossas ruas.
Flávio: - É...
José: - Mas, além disso, tem mais alguma coisa que você goste numa BMW?
Flávio: - Ah, claro! Eu me sentiria muito melhor?
José: - Se sentiria melhor?
Flávio: - Sim, ué?!
José: - Então você se olharia no espelho de casa com o peito mais estufado? Se sentiria mais homem! É isso?!
Flávio: - (risos) Sim, acho que sim.
José: - Imagino que você iria querer 'cantar' uma mulher do tipo de revista, com um carro desses.
Flávio: - (risos) Claro, né?
José: - Imagino também que na hora do sexo, você deva se olhar e pensar: sou um homem que tem um carro de 300 mil! Eu sou O Cara.... Fala sério, Flávio, você não iria mais confiante pra cama com ela?
Flávio: - (risos) Sem dúvidas!
José: - Sei, sei....
José: - Agora me acompanhe, Flávio...
José: - Você disse que iria 'cantar' uma mulher, digamos, 'diferenciada'. Justamente porque você acredita que um carro de R$ 300 mil te permitiria isso. É isso ou entendi errado?
Flávio: - Sim, é isso.
José: - Mas, cara, você não acha que ela estaria com você exatamente pelo carro? Pelo que você aparenta ter? Pelo que aparenta dar, no sentido material da palavra?
Flávio: - Sim, é verdade.
José: - E ainda assim, você acha que ela seria uma companhia agradável?
Flávio: - Bom....
José: - Por outro lado, você acha que estaria lidando com ela de forma digamos...digna, humana ou você também não a estaria usando de alguma forma?
Flávio: - Veja bem...
José: - Não, por favor, aguarde o término de meu raciocínio.
José: - Agora, estou aqui com botões pensando o porquê de você permiti-la fazer isso com você.
José: - Penso mesmo além disso, Flávio, reflito sobre como você concluiu ser você um homem melhor, mais especial, por ter um carro de R$ 300 mil. Como você enche mais o peito naquela situação e não agora com seu Siena Sedan.
José: - Como você se permite ser menos, hoje, mesmo sendo saudável, com familiares que te amam, com problemas, é claro, quem não tem problemas?, mas cercado de amigos. Você tem amigos e familiares que te amam, não tem?
Flávio: - É, pois é, tenho...
José: - E mesmo assim, tendo tudo isso, trabalhando aqui com seu carro, no aplicativo, ralando, vivendo, como você se acharia melhor, e acreditaria nesse seu modelo mental ser um 'homem melhor' por ter alguma coisa que o dinheiro compra?
José: - Cara, permita-me dizer isso, mas quero dizer respeitosamente que te acho um maluco!
Flávio: - Oi?!
José: - Para mim, Flávio, isso que você falou é uma verdadeira insanidade!
José: - Pior ainda, o que você acabou de dizer é o que é normal -  normal no sentido estatístico, no sentido de que a maioria das pessoas pensa exatamente assim como você!
José: - Aqui na rua, neste exato momento, as pessoas estão pensando, em regra, como você.
José: - Cara, isso aqui, a rua, transformou-se num hospício a céu aberto! Você não acha?!
Flávio: - É...acho que você tem razão, José. Não tinha pensado sob esse ponto de vista.
José: - Pois é, e esse modelo de subordinação humana, de coisificação das pessoas, é ensinado, aprendido, reaprendido, transferido em nosso dia-dia de pessoa para pessoa como se fosse o normal, o real. Nossa TV, nossas revistas, nossos jornais impressos, nossas rádios, nossas mídias sociais, na conversa de jantar de nossas famílias, todos ensinam esse modelo. É a nossa cultura que precisa de uma contracultura! Sabe por que? Porque viver é duro, não é? A gente acredita nisso, e a gente acha que será feliz, e só assim será feliz, quando cada um tiver o seu carro de 300 mil reais. Quando cada um estiver com seu objeto idealizado de consumo em mãos. Mas e aí...o que te faz melhor isso?
(10 segundos de silêncio)
José: - Sabe, acabei de lembrar do Steve Jobs. Você o conhece?
Flávio: - Claro, o cara daquela empresa do iPhone.
José: - Sim, ele mesmo. Ele tinha grana para mandar construir um ônibus espacial só pra ele! Tudo o que se pode comprar na face da Terra, esse cara tinha bala na agulha para chegar e pá....toma aqui o dinheiro. Você sabe do que ele morreu?
Flávio: - Não.
José: - Do mesmo cancer que matou a minha mãe. Eu, José da Silva, duro duro, o Steve Jobs, rico rico. Que diferença há entre nós, de fato? Um carro de R$ 300 mil? Status? Um ônibus espacial?
José: - Olha, Flávio, você me desculpe a franqueza, mas não pude resistir à reflexão com você.
Flávio: Que nada, Zé, obrigado, obrigado (meio pensativo, meio em estado de choque).
José: - Fico por aqui, chegamos! Preciso fazer meu exame trimestral de manutenção do cadastro na fila do transplante de órgãos.
Flávio: - Beleza, sucesso aí, Zé!
José: - Obrigado pela carona, Flávio. Fique com Deus.
Flávio: - Você também, Zé.
José: - Tchau, cara.

Flávio: - Até.

4 comentários:

  1. Vi a cena desenrolando. Verdadeira.
    Não deixe de escrever.
    É importante ler seus textos.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. A gente passa a vida e desperdiça a saúde em busca de dinheiro, para um "ideal de vida perfeita" e quando vê a vida passou e o dinheiro ganho é pra cuidar da saúde que desperdiçamos ...

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